Se o sexo explícito teve seu tempo (que pode voltar, obviamente), a moda atual é o estupro. Até aí nenhuma novidade. Fiz uma busca no site IMDB com a palavra “rape” (estupro em inglês) e o resultado foi 2.711 títulos. O número de filmes com cenas de estupro (inclusive pornôs) começa a se multiplicar a partir dos primeiros anos da liberação sexual, na primeira metade da década de 60. Houve uma mudança de mentalidade a partir de então. Não vou arrolar dezenas de longas-metragens de arte que investem em cenas do tipo. Os estupradores começam até a ganhar certa simpatia na filmografia recente. No ano passado, a história da violação de uma adolescente foi às telas na adaptação do diretor Peter Jackson do best-seller “Uma vida interrompida” (Lovely Bones), de Alice Sebold – e quase rendeu ao ator que fez o estuprador, Stanley Tucci, o Oscar de coadjuvante. A peculiaridade da trama está na forma como ela é contada, pela própria vítima, diretamente do limbo. O que significa que a audiência tem acesso a detalhes ainda mais escabrosos do crime. E as pulsões de amor e morte são tocadas por eles. Vou repetir o argumento de Walter Benjamin: no escuro, cada espectador se projeta na imagem projetada na tela. Assim, o processo de identificação é incontornável. Por isso, Benjamin definiu o cinema como “arte psicanalítica”. Na situação simulada do estupro, somos a um tempo vítima e agressor. Ocupamos os corpos e as almas dos dois lados do ato.
Ultimamente, o gênero estupro seguido por morte tem merecido maior atenção dos diretores. Quero mencionar dois filmes de suspense. Um faz boa carreira nos cinemas e outro entra em cartaz na semana que vem: o argentino “O segredo de seus olhos”, de Juan José Campanella, ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro de 2009, e a produção dinamarquesa “Os homens que não amavam as mulheres”, do diretor Niels Arden Oplev, suspense baseado no romance homônimo do sueco Stieg Larrson, best-seller mundial.
São produções aparentemente díspares. Apesar de uma ser sul-americana e outra nórdica, ambas [abordam] o estupro de uma forma intrigante. [...]
Os dois roteiros são unidos pelo tema do estupro seguido por morte. Em "O segredo de seus olhos", o foco está na beleza de Liliana, apesar dos ferimentos profundos deixados pelo assassino. A câmera passeia com volúpia pelo corpo nu violado e ensanguentado, até dar um close up nos olhos vidrados da morta, olhos enormes e... sonhadores. São os olhos do cadáver e do possível criminoso que levam Esposito, fascinado pela beldade morta, a começar a investigação. Em “Os homens que não amavam as mulheres”, os olhos abertos dos cadáveres colecionados pelos criminosos também são mostrados em detalhe. O filme dinamarquês é pródigo nos requintes sádicos. Os assassinatos são cometidos como rituais satânicos, repletos de símbolos e citações bíblicas. Na trama sueca, não há espaço para sentimentalismo. [...]
O estuprador do filme sueco [confessa:] “Estuprar é uma experiência fantástica”, diz ele, enquanto começa a enforcar Blomqvyst. “Não existe nada igual a matá-las. O que mais gosto é o olhar delas no momento em que se decepcionam, ao saber que não vou salvá-las, que elas vão morrer. É um instante maravilhoso.”
Por mais que resista por saber que se trata de ficções, o espectador acaba se deixando levar pelo enredo e, talvez, involuntariamente, conduzido a uma situação-limite que poderia ser real. É o que Aristóteles denomina catarse, de purgação dos desejos por meio de um mecanismo de transferência, para usar um termo mais moderno. [...] O cinema atual induz o espectador a fantasias proibidas, e entre elas tem enfatizado a do estupro. Ora, o estupro como atração erótica é uma distorção. Para mim, estupro é sexo ruim, mesmo em fantasia. Não há tema vedado à arte, se ela é grande. Agora, porém, os diretores têm confundido a exploração do interdito com excelência estética. O resultado só pode ser o rebaixamento dos sentidos – e da reflexão.
(Luís Antônio Giron, Época)
Nota: Muito oportuno esse artigo de Giron. Deve chamar a atenção especialmente daqueles que querem ter mente pura e capacidade de reflexão apurada. Além de evidenciar que cada vez mais as pessoas se habituam com o mal, note o que escreveu o autor: “o processo de identificação é incontornável” e “o espectador acaba se deixando levar pelo enredo e, talvez, involuntariamente, conduzido a uma situação-limite que poderia ser real”. Não é motivo mais que suficiente para escolhermos muito bem o tipo de produção cinematográfica que vamos assistir? Pense nisso.[MB]
By: Daniel Timóteo
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